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quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Capítulo II: Traição

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Quando eu estava conversando com o senhor Carlos, a primeira voz, um outro rapaz morador de rua se aproximou perceptivelmente curioso com a inusitada situação de ver alguém dando atenção para uma pessoa que vivia nas mesmas condições que ele. Perguntei-lhe se queria conversar e, meio desconfiado, aceitou. A princípio não queria falar seu nome, apenas o apelido. Vamos chamá-lo de B.
B. foi parar nas ruas há três anos atrás. Contou-me ter flagrado sua esposa o traindo com outro homem e, num acesso de cólera, ateou fogo nos dois. Por conta disso foi preso e perdeu seu emprego na Eletrolux. Desde então passou a dormir nas calçadas tendo o mais alto dos tetos: o céu.
Esse fato foi particularmente importante em sua subjetividade. O fantasma da traição ainda o atormenta. Assim como fiz ao senhor Carlos, pedi a B. que fizesse um pedido:
“Traição…e a mentira.”- respondeu ele.
“O senhor pediria que não existisse mais isso?”- quis esclarecer.
“É, o resto eu corro atrás.”- completou.
“O que é felicidade para o senhor?”
“ É ver uma criança sorrindo para mim.”
B. citou os vários trabalhos que já fizera, como o de caminhoneiro, e disse nunca ter sido ladrão, nunca ter roubado ninguém. Mesmo assim, denunciou a agressividade de alguns policiais. “Bate, humilha”. Quando lhe perguntei qual era a maior dificuldade de morar na rua, B. insistiu: “é a mentira e a traição.”
E ainda sobre isso, após lhe pedir um conselho de vida, eis sua resposta: “nunca acredite no seu melhor amigo.”
Para B. seu maior sonho é “voltar a ser gente”. É sempre apontado como “vagabundo”. Fez-me pensar que parte de nosso eu é construído no olhar do outro. Se B. não se considera gente por conta da discriminação que sofre, é porque em parte nossa humanidade depende de reconhecimento, a não ser, como li recentemente em um dos textos da autora Bell Hooks, que criemos o que ela chama de “amor interno”. Algo difícil de ser feito em um mundo de ódio.
Por fim, antes de partir B. disse que apenas quatro pessoas em São Carlos sabiam seu verdadeiro nome, levantou-se, apertou minha mão e o disse.

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