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quinta-feira, 5 de março de 2015

  Gabriel se empolgou na conversa com o Professor, e aparentemente aprendeu muito com ele. Professor tinha esse apelido porque ele ensinava seus companheiros aquilo que havia aprendido na Universidade. Formado em licenciatura em matemática e graduando em Engenharia Física, o rapaz interrompeu os estudos pelo envolvimento excessivo com bebidas alcoólicas (mas planejava retomá-los assim que possível).
  Um dos pontos interessantes foi quando disse ser mais feliz vivendo nas ruas do que em sua própria casa na cidade de Franca, porque seus amigos o admiravam pelo o que é, e não pelo o que (não) tem. Afinal, quantas vezes não somos julgados pelas nossas posses ou ausência delas?
  Como de esperado, mostrou-se um cara muito inteligente, Conversou sobre Teoria das Cordas e deu dicas de Cálculo: "é melhor estudar pelo Stewart e não pelo Guidorizzi."
  A polícia é muito presente na vida dessas pessoas, não é de espanto que Professor também tenha falado sobre ela: "muito policial bate e depois pergunta, mas muitos outros querem realmente nos ajudar."




quarta-feira, 26 de novembro de 2014

   Após uma palestras sobre as eleições presidenciais de 2014, Gabriel e eu decidimos pegar uma carona até metade do caminho para casa para economizar o dinheiro do ônibus. Conseguimos com certa facilidade, umas garotas da Engenharia Civil nos ofereceram um espaço no carro e nos deixaram onde pedimos. Quando estávamos quase cruzando a esquina, fomos abordados por um grupo de moradores de rua pedindo por algumas moedas. Começamos então a conversar com dois deles, eu com Wagner e o Gabriel com o Professor. Curiosamente, o Professor conhece minha orientadora, Vera Cepeda. Que mundo pequeno! Mas voltarei a ele daqui a pouco.
    Wagner era um homem magro, altura mediana, pele parda e olhos verdes.Há dois meses vive em São Carlos, mas sua cidade natal é Mogi das Cruzes, para onde pretende voltar em Janeiro. "Ficar parado no mesmo lugar não vira nada", disse ele. Wagner cursou dois anos do mesmo curso que eu faço atualmente, Ciências Sociais, e ainda pretende voltar a estudar. Várias vezes ele olhava seus companheiros, dizia seus nomes e em seguida falava "esses são o social...você sabe o que é o social?"
   Tinha um carinho especial pelos cachorros que os acompanhavam; pegou o "Corinthiano" e  o colocou no meu colo para alisar seus pelos com as cores do time. Wagner gosta muito de futebol, foi aos estádios do Pacaembu inúmeras vezes assistir o timão. No meio da conversa, Gustavo, um amigo meu da Sociais, surge com um saco de pães para doar ao pessoal. Brincou um pouco com Wagner que vestia a camisa do Corinthians, como um bom são paulino que não perde a oportunidade de zoar o time adversário. E logo foi embora.
   Continuei o papo com Wagner, e nesse tempo ele me mostrou os machucados provocados pelas agressões policiais: hematomas e arranhões pela perna, braço e costela. Reclamou também que a assistência social de São Carlos tem dificultado seu acesso aos albergues, e por isso anda dormindo nas calçadas. Mas era forte, como dizia, "e da chuva é só se esconder." A cachaça é o que ajuda a enfrentar o dia a dia "nada fácil" que ele e seus companheiros vivem.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014


              O amor não escolhe lugar para acontecer. Não exige carro, nem casa, nem muitas promessas. Apenas sonhos compartilhados e apoio mútuo. Era assim na simples vida de Edna e Elivaldo.
        Edna foi separada de sua filha pelo conselho tutelar e possui vários problemas com a promotoria, uma grande ironia em sua vida para quem um dia sonhou em exercer tal profissão. Não por menos, disse que se hoje pudesse retornar os estudos não faria mais Direito, mas sim Economia. A questão é que a dor da ausência da filha é amenizada pelo companheiro, com quem divide o leito de pedra. “Esse menino aqui foi a melhor coisa que encontrei em cinco anos”- disse ela. Estavam juntos há pouco tempo, e desde que se conheceram Edna disse que passou a sentir alguma paz (seu maior bem, como dito na primeira parte).
               Perguntei a Edna o que ela deseja de mais profundo para seu namorado. Ela me respondeu que deseja “um lugar para ele se estabilizar no meio da família”. Ficou claro para mim as razões por trás dessa resposta quando Elivaldo me contou sobre sua relação com a família e seu sentimento de dívida, em especial com o pai e a figura ausente da mãe.
               A vida de um casal sem-teto implica em novos obstáculos, como a falta de privacidade. O sexo deve ser feito em lugares abandonados, escondidos de possíveis curiosos e precavidos para não surpreender ninguém. Não é uma tarefa fácil encontrar lugares assim…
               Quanto aos dias de chuva, Edna e Elivaldo dormem clandestinamente na garagem de uma imigrante chinesa, e reclamam que pela manhã elas os acorda com batidas no portão e (prováveis) xingamentos em mandarim.
                 Ainda com essas dificuldades enquanto casal, além das que qualquer morador de rua enfrenta no dia-a-dia, Elivaldo e Edna persistem na jornada em busca de oportunidades para um dia saírem dessa precária condição. As rosas que vendem pelas ruas carregam em suas pétalas perfumadas a esperança de florescerem para uma nova vida.

Rosas de Elivaldo e Edna

terça-feira, 28 de outubro de 2014

                Elivaldo, com seus 29 anos, é bem mais jovem do que Edna. Um ótimo interlocutor de voz grave que um dia sonhou em ser repórter, mas que hoje- diz ele- pensaria em ser biólogo. Sua profissão, contudo, é a de eletricista graças a sua formação no Senai. Sente muita falta de exercer o ofício e sobre isso comentou: “sinto falta do meu alicate, do meu voltímetro, do meu amperímetro.” Segundo ele, o que falta para o morador de rua é oportunidade. É o que a maioria realmente quer, e não esmola. “Nem todo mundo que tá na rua…muito pelo contrário…é uma minoria que é ignorante.” Disse ter conhecido uma sem-teto que é advogada e, antes de dormir nas praças públicas, trabalhava como intérprete e com contratos internacionais.
Elivaldo cresceu em uma grande família com a infelicidade de ter perdido a mãe aos seis anos, fazendo com que o pai criasse sozinho suas cinco filhas e seu filho. Por ser o único homem entre as irmãs, diz que sempre sentia o maior peso da responsabilidade e se lamentava por não ter cumprido seu papel.
                Questionei sobre seus desejos e, lembrando da infância, disse que gostaria de ter convivido com a mãe e que um dia pudesse retribuir o carinho do pai. Nesse momento, Edna nos interrompeu:
“Agora posso fazer uma pergunta pra ele?”
“Pode, pode sim.”- assenti.
Virou-se para Elivaldo e começou:
“E qual seria uma ação e gesto que você daria, assim, para o seu pai…ééé…pra ele ter um…uma alegria no coração e falar assim: ‘não, esse é o meu filho!!!’?”
“Ter a responsabilidade de ter um trabalho, uma casa e uma família bonita (…) Eu tenho a certeza que a maior alegria dele é me ver bem.”- respondeu Elivaldo.
Em seguida, quis saber do seu conselho.
“Por mais que seja seu melhor amigo…e te oferecer uma droga…não se deixe influenciar, porque é um caminho difícil. Eu gostaria de voltar aos meus 17 anos…”
Mas isso não era motivo para se deixar levar pela vida, e inspirado pela frase de Norman Vincent Peale, justificou: “o covarde…ele nunca começa. O fracassado nunca termina. E o vencedor nunca desiste. E eu peguei essa frase pra mim porque eu nunca desisti.”
Ao demonstrar sua religiosidade e seus conhecimentos bíblicos, fiquei curioso para saber o que ele pensava sobre as pessoas e seus erros. Perguntei-lhe se acreditava que alguém deveria ser condenado pelo resto da vida por um erro grave e se o lado negativo de alguém ofuscaria seu lado bom.
“O julgamento humano gera injustiça.”- disse. A partir daí percorreu as várias faces  do perdão e das ações humanas de acordo com os ensinamentos de Cristo e do apostolo Paulo. “Perdoar para ser perdoado.” “O perdão faz bem pra quem perdoa.” “Tudo me é lícito, mas nem tudo me convém.” E tantos outros…

Afinal, qual será o significado oculto do perdão?

quinta-feira, 23 de outubro de 2014


  Movido pela fome, resolvi ir até o supermercado comprar alguma coisa para comer. Estava anoitecendo e esfriando após um dia muito quente, situação típica de São Carlos reforçada por promessas de chuva não cumpridas. No caminho, ainda estava me recordando da conversa com o senhor Carlos e lembrei que ele havia dito sobre um casal que morava próximo ao ponto em que ele se encontrava. Inspirado, decidi procurá-los.
  Em baixo de uma árvore, sobre um pano xadrez, conversava tranquilamente um casal de namorados. Ela, pele branca. Ele, pele negra. Ela, loira e olhos azuis. Ele, moreno e olhos castanhos. Cheguei mais perto e, ao explicar meu projeto, sentei-me para ouvir mais histórias. A mulher se chama Edna e tem 41 anos, é a ela a quem dedico essa primeira parte. 
  Paranaense, mas criada em Rondônia, Edna começou a trabalhar cedo, desde os 12 anos de idade. Passou por vários empregos acumulando 17 anos de carteira registrada. Sempre muito estudiosa, passou em primeiro lugar em Direito na UNIP (sonhava em ser promotora), e se recordava orgulhosa de como era boa em matemática e literatura. Citou Macunaíma, de Mário de Andrade, e disse que acertou no vestibular as questões sobre esse livro, um feito para poucos. Edna, contudo, não chegou a cursar a faculdade. Devido a problemas familiares e sua passagem na prisão, por motivos que não quis esclarecer, foi parar nas ruas. Sobre sua família, deu apenas a entender ter se sentido sempre a mais menosprezada dos irmãos, desde pequena. Contou que quando fazia alguma coisa errada, sua mãe mandava seus três irmãos agredi-la como forma de castigo.
  Durante a conversa, falou um pouco em espanhol e disse ter feito um curso de alemão, mas não sabia mais falar o idioma em razão da falta de prática. Mesmo assim, perguntou-me “wie heißen sie?” “Ich heiße, Gabriel”, respondi. 
  Para Edna, o maior bem do ser humano é a paz no coração. Paz que supera qualquer conquista material, como pode constatar em sua própria trajetória de vida. Já teve carro novo, boas roupas, moto nova. Nada lhe faltava. “Eu conquistei muito e acabei não conquistando nada”, disse. Hoje, para conseguir o mínimo para comer e beber sua cachaça, vende (com dificuldades) rosas artesanais com seu namorado.
  O vício em bebidas começou há anos atrás. “Eu chegava do serviço e tomava uma cervejinha todo dia. Todo dia. E depois a cervejinha foi ficando fraca…” E em seguida completou: “No Brasil não é a droga que é o problema, é a cachaça.” O alcoolismo a desestruturou por completo, e é essa estrutura que demonstrou buscar em seu discurso. “Eu acho que tudo o que eu precisava de volta era meu trabalho.” Mas é muito complicado se reestabilizar. Mesmo havendo albergues, Edna disse que eles só podem ficar no local por três ou quatro dias, tempo curto demais para qualquer tentativa de retomar as rédias da própria vida. “O problema do adicto é a falta do emprego, das oportunidades.” Ainda com todo esses pesares, pudemos rir um pouco quando disse que nasci em Pirassununga. “Aô, terra da pinga 51!”, brincou.
  Pedi à Edna um conselho de vida, gostaria de saber o que tantas experiências poderiam me ensinar. Sentindo-se feliz pelo namorado, numa relação de apoio mútuo, ela me disse: “respeitar sempre a pessoa que tá do seu lado, analisar sempre se é uma mulher boa. E estudar muito, muito, muito (…) nada do que a gente lê é perdido.”

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Quando eu estava conversando com o senhor Carlos, a primeira voz, um outro rapaz morador de rua se aproximou perceptivelmente curioso com a inusitada situação de ver alguém dando atenção para uma pessoa que vivia nas mesmas condições que ele. Perguntei-lhe se queria conversar e, meio desconfiado, aceitou. A princípio não queria falar seu nome, apenas o apelido. Vamos chamá-lo de B.
B. foi parar nas ruas há três anos atrás. Contou-me ter flagrado sua esposa o traindo com outro homem e, num acesso de cólera, ateou fogo nos dois. Por conta disso foi preso e perdeu seu emprego na Eletrolux. Desde então passou a dormir nas calçadas tendo o mais alto dos tetos: o céu.
Esse fato foi particularmente importante em sua subjetividade. O fantasma da traição ainda o atormenta. Assim como fiz ao senhor Carlos, pedi a B. que fizesse um pedido:
“Traição…e a mentira.”- respondeu ele.
“O senhor pediria que não existisse mais isso?”- quis esclarecer.
“É, o resto eu corro atrás.”- completou.
“O que é felicidade para o senhor?”
“ É ver uma criança sorrindo para mim.”
B. citou os vários trabalhos que já fizera, como o de caminhoneiro, e disse nunca ter sido ladrão, nunca ter roubado ninguém. Mesmo assim, denunciou a agressividade de alguns policiais. “Bate, humilha”. Quando lhe perguntei qual era a maior dificuldade de morar na rua, B. insistiu: “é a mentira e a traição.”
E ainda sobre isso, após lhe pedir um conselho de vida, eis sua resposta: “nunca acredite no seu melhor amigo.”
Para B. seu maior sonho é “voltar a ser gente”. É sempre apontado como “vagabundo”. Fez-me pensar que parte de nosso eu é construído no olhar do outro. Se B. não se considera gente por conta da discriminação que sofre, é porque em parte nossa humanidade depende de reconhecimento, a não ser, como li recentemente em um dos textos da autora Bell Hooks, que criemos o que ela chama de “amor interno”. Algo difícil de ser feito em um mundo de ódio.
Por fim, antes de partir B. disse que apenas quatro pessoas em São Carlos sabiam seu verdadeiro nome, levantou-se, apertou minha mão e o disse.
Das vezes que nos defrontamos com nós mesmos na vida e reservamos um tempo para olhar o mundo a partir da perspectiva mais humana é que surgem as ideias que transformam, as ideias que unificam aquilo que nunca deveria ter sido separado. Foi assim que, em meio a pensamentos e angústias, resolvi me encontrar com os mais afetados pela indevida separação. Essas pessoas não são difíceis e tampouco raras de se encontrar; às vezes basta atravessar uma rua ou simplesmente olhar para fora da janela de casa.
No meu caso, fui a um dos lugares mais movimentados da cidade de São Carlos (e provavelmente de quase todas as cidades): a rodoviária municipal. Lá estava ele sentado no chão, mal vestido e claramente cansado pelo calor do dia e pelos anos de vida que se revelavam na pele sofrida. Aproximei-me daquele senhor e lhe ofereci algumas esfihas que havia comprado. Feliz com a única refeição do dia, o homem logo se sentiu a vontade e permitiu que conversássemos.
Carlos é descendente de índios Guarani, tem 51 anos (ou “meio século e um”, como ele disse) e naquele dia estava só de passagem pela cidade, pois mora em Ribeirão Preto, mesmo município que sua família, embora esta estivesse bem acomodada. Ele trabalha como pedreiro e sabe fazer artesanato, mas disse estar afastado por problemas de saúde. As ruas se tornaram seu lar desde 1986, quando resolveu sair da casa dos pais em razão de um desentendimento com o irmão. Lembrava com tristeza desse dia e das palavras do pai: “se você sair de casa, nunca seja mais do que ninguém, mas também não seja menos. Seja você mesmo.”.
A saudade da família junto ao preconceito e às dificuldades diárias por que passa nas ruas traz lágrimas aos olhos do Carlos. Quando lhe perguntei da maior dificuldade de morar nessas condições, ele logo disse “dormir no chão”. Reclamou das formigas, das baratas, da dor no corpo. “As pessoas só querem tirar o que você tem”, alegou ao relatar dos roubos que sofrera. A maldade das pessoas foi constantemente denunciada por Carlos, pessoas que julgam, apontam e “falam tudo o que você não é.” “Só sabem justificar o mal pra você”.
Perguntei a ele que se pudesse fazer qualquer desejo, qual seria. Sua resposta foi tão humilde quanto sua vida: “Que me desse um cantinho pra mim ficar em paz, pra mim trabalhar sossegadinho. Que Deus preparasse uma esposa pra mim.”
E das outras palavras que se seguiram, preocupadas em me aconselhar a nunca sair de casa, Carlos disse que o Diabo vive nas ruas e por isso é necessário constante vigilância. A religiosidade se fazia presente no discurso daquele homem, alertando os males da mentira e do medo.

O morador de rua é invisível e mudo diante da sociedade. E sua condição de marginalizado é alimentada a cada olhar desviado, a cada dedo que julga a cada palavra que condena. Uma realidade de muitos Carlos que pelo mundo vagam. Meu intuito começa simples: dar visibilidade e voz aos que são calados. Aonde isso vai dar, não sei. Mas a diferença deve partir de algum lugar…
 
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